19 junho, 2020

81.

 O céu fazia mesmo com que eu viajasse pra outro lugar. Eu podia imaginar uma vida inteira só durante alguns minutos olhando as nuvens sobrepondo o sol que se escondia. Era foda demais. Parecia pintura. Um barulho fez eu me desconectar da minha viagem – o motorista tinha acabado de passar por um buraco. Diabos, essas cidades eram mal cuidadas. Eu estava dentro de um ônibus. Ia chamar um carro mas desisti, estava mesmo tentando economizar algumas coisas. Eu estava pensando mais no meu futuro, por mais que já estivesse com um pé nele. Uma coisa em construção, pode-se dizer. Tinha ido buscar meu pagamento por algumas coisas que escrevi. Essa coisa de vender algumas palavras podia me dar alguns trocados, mas sabia que não ia me levar a algum lugar. Não um lugar glorioso. São poucas as pessoas que têm chance de uma vida gloriosa. Mas não custa nada tentar algo próximo.
    Cheguei em casa e fui direto pro banho. Quando terminei, coloquei um blusão e meias, peguei uma taça de vinho e fui pra frente do computador. Estava tentando gostar de vinho, apesar de achar muito clichê. Comecei a trabalhar nos meus escritos, algumas histórias novas, mas não saía nada. Tudo que saía, apagava. É a coisa toda de que se não sai de nós a explodir, nem devemos tentar. Não vale o esforço. Mas eu continuava tentando porque ultimamente tinha descoberto alguns sentimentos novos. E a melhor forma que encontrei de lidar com o que sinto, há tempos, foi colocar isso em histórias e versos. Por vezes meia boca, por vezes não. Mas sei que esse escrito que tentava fazer não ia ficar uma história do caralho. É mesmo difícil escrever sobre quem a gente não conhece. 
    Descobri em mim um sentimento que há algum tempo tentava matar. Talvez não conseguisse entender. Diabos, nem hoje mesmo consigo fazê-lo tão bem. Essas coisas de amor, quem sabe, não seriam adequadas pra mim. O pouco nunca me satisfez, de fato, e pensando nisso, deve ter sido a razão pela qual eu nunca me afundei nesse sentimento. Mas tenho uma mania fodida de querer resolver conflitos passados - Pelo menos nos meus escritos. Escrevi alguns versos e fui pra cama, não era um bom dia pra nada. Não demorei muito a dormir. 
    Acordei com um dos meus gatos miando e já levantei logo pra colocar ração. Sentia como se tivesse uma bigorna em cima de mim ou algo do tipo. Talvez as tentativas estivessem me cansando. Deitei outra vez. Na segunda vez que abri os olhos, senti cheiro de comida do vizinho e sabia que era mais de meio dia. Levantei, abri a geladeira e peguei algumas coisas pra misturar nas panelas. Quando eu vou parar de querer só o suficiente? Deixei no fogo e peguei meu celular. Tinham muitas mensagens das minhas amigas querendo marcar uma festa. Lavínia tinha conseguido um emprego, finalmente, e elas queriam comemorar. “Foda-se, vamos fazer na minha casa”, eu mandei. Acho que eu não estava ligando pra muita coisa. Eu pagava as minhas próprias contas. Tinha o direito, e talvez precisasse mesmo disso. Sair um pouco da realidade nem que fosse por uma noite. Só por mais uma. 
    Antes de anoitecer, me encontrei com as garotas pra gente comprar algumas coisas pra festa. Uma boa quantidade de pessoas ia estar lá, e a gente não queria ficar desabastecida nem por um instante. Passamos em um atacadista e compramos várias bebidas quentes. Compramos gelo também. Quando a noite chegou, a gente já tinha acendido os leds, as bebidas tavam gelando no freezer e algumas pessoas começaram a chegar. Gente que eu nem conhecia direito. Talvez fosse do que eu precisasse. Coloquei meus gatos em um dos quartos com tudo que eles poderiam precisar durante a noite, tranquei a porta e guardei a chave na minha gaveta. Deixei as meninas recebendo quem tinha chegado e fui terminar de me arrumar. Já tinha me encarregado de levar algumas long necks pro meu quarto. Acho que hoje era um bom dia pra eu me desligar de tudo. Comecei a beber rápido, e enquanto eu tava me maquiando, me deparei com minha cara embriagada no espelho. Beber que nem louca sempre foi minha tática pra escapar da realidade. Eu ficava bêbada fácil, principalmente quando bebia rápido. Já tava escutando a música quando terminei de me arrumar. 
    Saí do quarto pra sala e me deparei com muita gente, alguns acendendo o narguilé, outros na cozinha pegando gelo. Dei oi pra algumas pessoas que eu conhecia e fiquei olhando até encontrar as meninas. A gente começou a dançar e beber. “Passa o vape aí pra mim”, eu pedi. Uma das meninas tinha comprado um daqueles modelos touchscreen. Tinha uma coisa estranhamente sexy em fazer uma fumaça. Eu fui ficando mais louca à medida que dançava, e do nada me deparei com a Mia. Olhos embriagados e sorriso largo, guria das palavras soltas quando queria. A gente se olhou mas não se falou. A gente não se falava demais. Se queria, já se disse, se sabia, mas não conversava. Sei lá por quê. Muito provavelmente tinha acontecido uma daquelas coisas de eu não saber dizer bem as coisas que eu queria. Sempre falei muito dos meus sentimentos, mas os meus quereres sempre ficavam meio confusos. Até mesmo pra mim.
    Já tinha usado o vape sei lá quantas vezes, mas o juice tava gostoso pra porra. Tava bonzinho de puxar. Acho que a festa na minha casa tinha virado aquela coisa de amigo chamar amigo, e eu só me toquei mesmo disso quando a Lavi me chamou.
    — Tu não vai acreditar em quem tá ali. 
    — Aqui tem gente demais. Quem é? – Eu falei.
    Ela apontou com a cabeça. Mas era só o Michael. Não era motivo pra eu ficar desatenta, apesar de que as coisas ficaram meio que no ar depois do nosso encontro num evento. Foda-se.
    — Ele deve ter vindo porque aqui tem muita gente que ele conhece. – Disse pra Lavi, mas quando olhei de novo, achei estranho pra caralho. Ou achei bom. Sei lá, fiquei confusa. Não consegui bem entender o que tava se passando na minha mente, o que eu tava achando daquela situação. E muito provavelmente a bebida tinha grande influência sobre isso. Talvez eu estivesse louca. Mas estava ali bem do lado dele. Wes.
    Eu fiquei olhando e ele olhou também. Não sabia o que ele poderia estar pensando, mas na real, eu nunca sabia. A única certeza que eu tinha era de que eu precisava de mais bebida pra tentar absorver. Eu fui no freezer pegar algumas doses pra mim e pras meninas. Achei uma boa ideia virar umas duas antes de levá-las. Eu sentia que era o meu dia. Em pensar que na manhã eu mal estava suportando meu próprio peso, e agora me sentia capaz de ganhar o mundo. Era uma vida confusa. E eu raramente tinha bom juízo. Levei as doses pras garotas, e começou a tocar uma música que a gente gostava pra porra. Funk e rap. A gente começou a dançar, e no meio de reboladas, alguém esbarrou em mim. Era a Mia. Ela disse algo que eu honestamente não entendi porra nenhuma. “Que que cê disse?”, perguntei. “Cê tá muito louca”, ela riu, “vamos puxar um narg comigo?”. Eu fui. Não fazia mesmo a menor ideia de onde tava o vape.
    A gente foi pra uma clássica rodinha em volta do narguilé, coisa que eu sempre achei meio deprimente. Sei lá, sempre foi meio desanimador aos meus olhos. Parecia que ninguém que tava ali fazia nada além de ficar fumando. Era um porre. Mas ela pegou a mangueira, deu uma puxada e passou pra mim. A essência tava queimando, mas eu puxei de novo independentemente. Já tava tri louca. Mia pegou uma garrafa que tava no chão e deu a ideia de a gente virar na boca. Eu concordei, e só soube o que era quando senti o gosto. Cachaça de banana. Virei na boca dela. A gente começou a sacudir a cabeça pra ficar mais louca ainda. Eu tava olhando os leds piscarem e aquilo tava me deixando tonta, então sentei no chão, e uma das minhas amigas veio trazer o vape pra mim. A Mia sentou do meu lado e pediu. Ela puxou, virou meu rosto e passou a fumaça pra minha boca. Tava olhando nos olhos dela e podia sentir que as duas tavam doidas e as duas tavam afim. Soltei a fumaça e a gente se beijou. Paraíso que me rejeitou.
    Fui pra perto das gurias pra gente dançar mais. Eu não me sentia cansada, mas tava com sede. Fui pra cozinha pegar uma latinha pra mim, e sorte que não tinha ninguém lá. Não gostava quando alguém queria serrar minha bebida. Eu tava procurando o sal pra pôr dentro da cerveja, e escutei uma voz que não me era estranha. Eu podia estar bêbada, mas conhecia aquele tom. Era o Wes. 
    — E aí. – Ele disse.
    — Nossa – eu ri debochada -, não pensei que tu estaria aqui. Tu veio com teu amigo, né.
    — Ele me chamou pra uma parada e eu nem sabia que era na tua casa. Fiquei te olhando sem saber, fi.
    Eu ia responder quando a Lavi chegou já me puxando pra voltar pra dançar. Eu olhei pro Wes e dei uma risada meio sem graça. Acho que ele entendeu. Mas talvez tenha sido melhor. A gente nunca se encontrou, mesmo se querendo sempre. Então eu mal sabia o que dizer. Mas tava louca demais pra pensar nisso, e talvez fosse o menos pior. Afinal, sempre penso demais. Isso me atrasa. As meninas quiseram sair pra ir em uma distribuidora que tinha ali perto comprar mais juice, e eu fui junto. Já deviam ser umas 3h quando a gente tava no caminho pro meu portão, e então meu vizinho me chamou. Tava reclamando do barulho. Porra, falou que se não encerrasse, ia chamar a polícia. Um caralho que eu queria problema. Tava louca demais pra isso. Entrei, juntei com as gurias e a gente começou a dispensar aquele monte de gente.
    Decidimos que só nós íamos arrumar as coisas. Não queria mais gente ali. E quase todo mundo tinha ido embora quando eu olhei pra porta. Algumas pessoas ainda estavam saindo, outras juntando as coisas pra ir. Meu olhar se encontrou com o do Wes, de novo. Ele deixou os amigos e veio pra perto de mim. “Tu quer sair daqui?”, ele falou, alto o bastante pras meninas escutarem. Mas elas concordaram. E eu também. O Michael viu. Não sabia o que ia acontecer com eles depois, mas eu realmente tava pouco me fodendo. 
    Eu já tava louca demais e com um pouco de sono. Tudo na conta da bebida. Ou na conta da loucura. Sei lá. A gente tava esperando um carro que ele tinha chamado e ele tirou a blusa de frio pra eu vestir.
    — Acho que depois vai dar problema pra vocês dois. – Eu disse.
    — Fi, nem ligo. Quero tá contigo.
    — Pensei que vocês já tavam indo embora.
    — Eles tavam, mas eu não queria ir sem te levar. Rola tu ir pra minha casa?
    Acho que se eu estivesse menos bêbada eu teria pensado um pouco mais sobre aquela proposta. E não sei se pensar mais teria me levado a concordar ou não. Não sei se seria bom ou ruim. Na real, que se foda isso agora, eu só queria estar junto dele também. Antes já me peguei imaginando como seria. Mas hoje eu nem consigo raciocinar nisso, só viajei escutando aquela voz. Diabos, ele tinha uma voz... Ou talvez fosse o jeito de não ligar muito pra nada. Quem sabe ele só parecesse não ligar. Quem iria saber o que importava naquele momento? Eu concordei.
    O carro chegou. Mal entrei, encostei na janela e acabei dormindo. A bebida me derrubou. Acordei com o carro parado e o Wes do meu lado me chamando pra entrar. Saí do carro e fui direto pro portão. Enquanto ele pagava o cara, percebi que eu não conseguia pensar em nada muito construtivo. Eu tava mesmo doida, mas não só pela bebida. Entramos na casa e fomos direto pro quarto dele. Eu tinha levado o vape e comecei a puxar. Ele sentou perto de mim. Tava silêncio e a gente se olhando. 
    — Cê fica bravo que eu use o vape aqui dentro?
    — Tranquilo. Eu nem sabia que tu curtia essas coisas.
    — Curto agora. Mas vou parar de usar, vai ficar com cheiro aqui.
    Eu levantei e fui colocar o vape em cima de uma cômoda que tinha ali. Eu tinha tantas coisas pra perguntar e tantas coisas que eu queria saber, mas não tava no meu juízo perfeito pra isso.
    — Essa é a casa do seu pai? – Foi o máximo que eu consegui perguntar.
    — Não, ele ainda tá morando lá. Não ia dar certo morar junto. Não suporto demais.
    — Sei que ele vacila demais mas você devia trabalhar tua raiva. Eu mesma tenho minha cota de problemas com família, e se eu deixasse isso me consumir, porra...
    — Nossa raiva pelo mundo é parecida. Fi...
    Dei uma risada. — Que foi?
    — Nada não.
    Revirei os olhos. Ele tava na minha frente e mesmo assim tava escondendo as coisas que queria dizer. Diabos, isso me irritava pra caralho. Sentei no canto da cama e fiquei de cara fechada.
    Ele riu com deboche. — Tu me tira do sério. – E me olhou de novo.
    — Eu nem fiz nada.
    Ele chegou perto. — Ia dizer que tu é linda demais.
    Eu fiquei com vergonha e meu coração começou a ficar meio esquisito. Acho que tava batendo forte. Talvez fosse o fato de a gente estar perto demais. Talvez fosse o fato de a gente estar ali. Talvez fosse a gente. Wes deu uma risada, e eu vi que realmente curtia pra caralho a boca dele sorrindo. Eu olhei quase que sem querer. A gente se beijou. Ele foi beijando meu pescoço, e enquanto eu me arrepiava inteira, notei que a gente já tava deitado. Entre vários beijos que a gente tava dando, ele pegou nas minhas coxas e foi tirando a minha blusa de frio e a que eu tava usando por baixo também. Ele começou a me chupar. Porra, esse menino sempre conseguiu me deixar molhada. A gente fodeu e depois ficou se beijando até dormir. Dormimos abraçados. 
    O céu tava quase claro quando eu acordei, mas não era de manhã. Fui na cozinha beber uma água e olhei pela janela. Era neblina demais. Tava bonito – o céu tava meio rosa. Tava frio demais e tudo que eu queria era deitar de novo. Voltei quase que correndo pra dentro do quarto e esbarrei em alguma coisa que eu nem vi o que era. Quando ia deitar, o Wes acordou. Me puxou pra cama e me abraçou pra me esquentar.
    — É bom a gente assim. Tô feliz demais que a gente tá bem. Tu é gostosa e linda pra caralho. Fi, tu mexe comigo. Quero viver as nossas coisas contigo.
    Eu escutei ele falando com a voz distante, eu tava quase dormindo outra vez. Nem sei o que respondi, mas sei que tava sentindo amor em mim. Naquele instante, não importavam nossas confusões. A gente tava bem e só.
    Acordei algumas horas depois e ele tava bem pertinho. Eu tava sentindo o perfume dele. O quarto tava um pouco claro. Peguei meu celular e olhei a hora. Ia dar oito. Eu tava com um pouco de dor de cabeça, meio com fome, e mais sã. Eu sabia que o perfume era bom, sabia que nossa foda era boa. A gente já se repeliu demais, e ao mesmo tempo, a gente combinava demais. Pareciam os dois lados da mesma moeda. Talvez eu estivesse me sabotando pensando demais às oito da manhã, mas eu sabia que por mais que nossos corpos estivessem juntos, nossos corações não permaneceriam assim. Era isso. Levantei e chamei um carro. Olhei e ele não tava acordado. Fui embora."

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